São Paulo, 07/05/07

 

 

De: Guga Stroeter

Para: Dimitri Lee

 

Vamos começar sem delongas; e como diria Luluzinha, vamos dar nomes às bolas. O talentoso fotógrafo Dimitri Lee é agnóstico, enquanto esse que vos escreve essas palavras é um santista moderado. E mais uma vez estamos falando de futebol que todos sabemos ser uma expressão atualizada das guerras e do territorialismo pré-civilizatório. Podemos dizer que é mesmo pré-humano, pois pássaros, gatos e formigas também demarcam território e são capazes de colocar esta questão acima de sua sobrevivência individual.

Mas nós brasileiros temos incontestavelmente o melhor futebol do mundo. Isso é comprovado em qualquer estatística; e os que ousam colocar Maradona acima de Pelé, em qualquer quesito, é um desinformado ou um imbecil. O Brasil é o país do futebol por diversos motivos mas em grande parte temos a mestiçagem cultural que nos brindou como herança a movimentação corporal do baile polirrítimico africano, do culto ao corpo e do espírito coletivo do indígena nu e a fome subdesenvolvida que nos obriga a rompantes de individualismo para safar-nos das piores situações, quando o mundo nos apresenta obstáculos rígidos aparentemente intransponíveis. E então, driblamos.

Parece-me que o brasileiro é especialmente afeiçoado à mentira. Ainda acreditamos em sacis, caiporas, bispos evangélicos, apresentadoras loiras de programas infantis, presidentes e políticos. Por esse mesmo pavor à realidade amamos nossos times do coração, numa paixão ridiculamente volátil: aquele bom jogador mau caráter do outro time, quando é contratado pelo nosso clube do coração torna-se imediatamente herói. E ele faz um gol, e ele beija a camisa e todos acreditamos nele. E mesmo o jogador, por ser brasileiro, acredita em sua auto-mentira... e temos os estádios, os templos que se ergueram no séc XX numa reprodução óbvia dos coliseus romanos e cada um deles têm sua história. Mesmo os ateus e céticos são obrigados a reconhecer de que um estádio é muito maior do que sua estrutura de concreto. Mesmo quando eles forem demolidos, ou tornarem-se meras evidências paleontológicas dos cientistas do séc XXV, os grandes jogos que ali aconteceram sobreviverão na esfera mítica e misteriosa. Os arqueólogos do futuro caminharão dentro dessas arenas e perderão o fôlego, pois intuitivamente serão embriagados pelo caráter religioso dessas estruturas. Talvez algum deles até encontre a múmia do o sapo de boca amarrada que foi enterrado no Parque São Jorge na famosa mandinga que impediu o Corinthians de conquistar o título paulista por mais de duas décadas. Agora vamos aos estádios:

 

Maracanã

 

 

O Maracanã é o maior do mundo, a expressão mais grandiosa de um povo humilhado, é o palco máximo do futebol. Nenhum jogador em qualquer parte do mundo pode julgar-se sério sem ter ao menos uma vez na vida ter disputado uma partida no Maracanã. E qualquer um de nós reles mortais, fanáticos pelo ludopédio, não devemos morrer antes de lá entrar, mesmo que seja para assistir o Madureira ou São Cristóvão. A suntuosidade do Maracanã é proporcional à sua desgraça. Pois seu desenho circular assemelha-se a uma grande ferida purulenta. A maior ferida narcísea da história nacional: ali ocorreu a maior tragédia da história, o “maracanazo”, quando o Brasil foi derrotado por 2 x 1 pelo Uruguai em 1950, após começar ganhando com um gol de Friaça e jogando pelo empate. O Maracanã sangrará eternamente, e isso é visível mesmo para quem o sobrevoa na ponte aérea.O Maracanã falhou na única vez que verdadeiramente ele foi necessário. É, portanto tragicômico: nosso orgulho, nossa vergonha, misturados numa promiscuidade além do tempo.

 

 

 

Vila Belmiro

 

 

Para um paulistano como eu, que delícia é descer a linda serra do mar, atravessar o pesadelo de Cubatão (cenário ideal para um filme trash e apocalíptico do mundo auto destrutivo do aquecimento global) e chegar a Santos, a cidade acariocada (onde se fala tu ao invés de você) que é a capital do futebol. Eu como santista sinto um alívio tremendo, um incômodo peso sair de minha coluna vertebral e é absorvido por essa terra arenosa e mágica, onde deixo de ser minoria. Meu sorriso escancara-se: estou em casa, encontrei minha família, pois crianças e senhoras corcundas de velhas vestem a camisa do Santos com naturalidade, lavando suas calçadas. Então adentramos a Vila Belmiro que é certamente patrimônio material e imaterial da humanidade. Ali reinou Pelé desde os 16 anos de idade, e nada mais precisa ser dito. Mas a emoção religiosa em poucos momentos é desfeita, pois não há estádio no mundo de arquitetura mais mesquinha e incompetente. Na maioria dos lugares das arquibancadas, é impossível ver o campo inteiro. A Vila Belmiro é um poleiro onde o espectador tem que escolher qual metade do jogo ele pretende assistir. Quando a bola vem perto da lateral e esperamos um cruzamento, somos obrigados a imaginar a cena, pois o campo fica escondido pelas cabeças a nossa frente. E então todos levantamos para tentar enxergar, o que torna nosso comportamento ainda mais ridículo. Agora sim, vemos cabeças angustiadas e nada mais. Proponho a abertura imediata da CPI da Vila Belmiro, e que o arquiteto seja condenado ao menos simbolicamente. Esperar mais do que isso seria igualmente tolo: a cordialidade brasileira tão bem descrita por Sergio Buarque de Holanda, décadas atrás tornou-se o corporativismo apartidário, que permeia do presidente ao contínuo e confere poderes e imunidade a canalhas assumidos, diversas vezes democraticamente reeleito como Eurico Miranda.

 

 

Morumbi

 

 

Morumbi, na língua geral, acordada entre os indo-americanos e os jesuítas quer dizer “colina verde”. Até aí, morreu o Neves. Mas o Morumbi é o maior estádio de São Paulo, que por sua vez é a quinta maior cidade do mundo... está incrustado no coração do bairro da alta burguesia que estabeleceu seu poder econômico na complacência dos tempos da ditadura. Ai confere-se o caráter aristocrático do São Paulo Futebol Clube. É um grande estádio onde ocorreram lindos jogos, mas carece de charme e espírito democrático. A chegada da torcida ao estádio do Morumbi merecia ser tema de documentário: uma horda agressiva de descamisados bárbaros berrando palavrões caminha entre os casarões dos detentores do PIB nacional, que por suas janelas ou guaritas, vislumbram uma simbólica revolução popular sanguinária, repleta de guilhotinas. E por culpa exclusiva das novelas da Globo, esse câncer que dissimula valores de Miami a um povo analfabeto que tem na televisão seu único meio de comunicação, os jogos nos dias de semana passaram a ocorrer as 21:45hrs. É muito tarde! E o jogo acaba perto da meia-noite num lugar que não tem metrô, trens ou ônibus... e na escuridão da noite nossos torcedores são socialmente condenados a mais uma vez viver na carne o papel de bandido, intruso. Essa desqualificação dói e cria cicatrizes profundas.

 

 

 

Palmeiras

 

 

O Parque Antártica é extremamente charmoso. Situa-se numa linha reta da seqüência da Avenida São João e sua dimensão é acolhedora. É fruto da presença proletária nas bordas da estação ferroviária, aonde os italianos que chegaram na segunda metade do séc XIX juntaram sua força de trabalho ao negro escravo ou abolido. Trabalhavam na ferrovia e jogavam futebol. Esse é o Parque Antártica, símbolo da classe média operária tão trabalhadora quanto segregacionista. Sou bisneto de italianos e tive o privilégio de passear pela Itália maravilhosa. Mas a cultura italiana ainda guarda um separatismo visceral herdado das cidades-estado que existiam autonomamente e que guerreavam entre si, com armas e dialetos, em pleno séc XVIII. O milanês sente-se superior ao napolitano que rivaliza com o calabrês, numa seqüência infinita de desavenças entre nortistas e sulistas. Mas felizmente, aqui no Brasil tudo é amenizado. E ir ao Parque Antártica é delicioso.

 

 

 

Juventus

 

 

Entrar no estádio da Rua Javari é uma viagem no tempo. Um mergulho profundo na alma melancólica paulistana, pois o Juventus, o “moleque travesso”, é a única estrutura de clube de bairro que subsiste precariamente no séc XXI. O Juventus simboliza o que todo clube deveria ser: uma representação legítima do bairro, da comunidade circundante. Juventus é a Mooca e por incrível que pareça a Mooca prossegue sendo um bairro autêntico. E o Juventus como clube esportivo recreativo sempre foi um fenômeno de estatísticas quando o assunto é quantidade de associados. Apesar disso a torcida do juventus é ridiculamente pequena, os próprios juventinos afirmam: “cabemos numa Kombi”. Mas o juventus é o segundo time de qualquer paulistano, todos simpatizamos com ele, apesar da sua função esdrúxula no cenário competitivo do futebol contemporâneo. Ele é o “moleque travesso” pois não chegou à idade adulta, a maturidade de ganhar títulos. Sua função histórica é perturbar, encher o saco, cumprir sua vocação de pedra no sapato. Pois o juventus não ganha nada, mas sempre complica a vida do favorito ao título e esse mérito nunca permitirá que o juventus desça a íngreme montanha do Olimpo dos deuses do futebol. Seu lugar de pentelhar aos grandes está garantido na eternidade.

 

 

 

Corinthians

 

 

Comecei o texto assumindo minha parcialidade passional. Sou santista, freqüento estádios mas nunca adentrei o Parque São Jorge. Freqüentemente passo de carro pela marginal, coloco a cabeça para fora e grito um palavrão, ou mostro o dedo médio eriçado para ninguém. Fala sério: legalmente o estádio está penhorado e pertence ao Luizão, esse digno artilheiro de aluguel, pentacampeão, que cavou um pênalti inexistente que nos garantiu a vitória contra a Turquia em 2002. A fazendinha é uma vergonha, pois o clube com a maior torcida do Brasil, a mais fanática, a mais presente e que teve presidentes carismáticos e folclóricos como Wadi Helu, Vicente Matheus... o MSI representa a máfia russa de tráfico de armas, o Corinthians de 2006 é o símbolo da lavagem de dinheiro, da anuência fiscal. Felizmente há um atrito: os galácticos individualistas não conseguiram fazer equipe, e o dinheiro não venceu. Odeio o Corinthians, mas admiro a fidelidade, a raça, o empenho. Um jogador corinthiano não precisa jogar bem, mas deve ir até o seu limite em favor do timão. Aquela inscrição nas paredes do clube de campeão mundial pela FIFA, me enoja. Que torneio bunda, que não valia nada. Como um clube pode ser campeão mundial porque foi convidado para dar bilheteria e não passou pelo processo sangrento de superar mitos argentinos como o Boca e o River? Título mundial porra nenhuma, mas como apreciador de futebol, pago o maior pau para o Rivelino, o Sócrates, e pasmem: o Ricardinho! Que os deuses do futebol abençoem a Wilian e Lulinha. Sem falar na passagem de Tevez, o argentino com alma de corinthiano que fui obrigado a engolir fazendo o diabo contra meu time do coração. Entendam: amo o Santos, mas o futebol bem jogado, o craque artístico aguerrido é um resgate da paixão por um microcosmo. Sou doente por futebol. Vivo como músico profissional mas o futebol está acima do casamento. Como alguém pode casar com uma mulher que enche o saco porque o maridão está cagando para o mundo, querendo assistir a uma partida de futebol na TV?

 

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